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Além da voz maturada, Teresa dá corpo à obra atual de Noel em show politizado

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“Não tive coragem de gravar essa música, mas em show pode tudo, né?”, gracejou Teresa Cristina, no palco do Theatro Net Rio, após cantar o samba-canção Três apitos (1933), um dos títulos mais belos do cancioneiro do compositor carioca Noel de Medeiros Rosa (11 de dezembro de 1910 – 4 de maio de 1937). O gracejo teve desnecessário tom de justificativa, pois o fato é que a cantora carioca deu voz lindamente ao samba-canção, com a dose exata de melancolia, na estreia nacional do show Teresa Cristina canta Noel – Batuque é um privilégio, reiterando em cena a maturidade interpretativa evidenciada no recém-lançado álbum em que canta 14 músicas deste pioneiro compositor que fez ruir as fronteiras entre o samba do morro e o do asfalto na década de 1930, depurando os códigos apresentados pela seminal turma de compositores agregada no morro do Estácio, exaltado por Noel no samba O X do problema (1936).
Logo após o violonista Carlinhos Sete Cordas ter se posicionado em cena, Teresa Cristina entrou visivelmente tensa no palco do mesmo teatro da cidade do Rio de Janeiro (RJ) em que estreou, em novembro de 2015, o show dedicado ao cancioneiro de outro bamba carioca, Cartola (1908 – 1980). A tensão foi justificável. Na noite de ontem, 21 de março de 2018, a cantora fez a primeira apresentação do show com músicas de Noel.
Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas
Mauro Ferreira
A estreia era a razão do nervosismo, como Teresa logo confidenciou ao público. Contudo, nem por isso a artista deixou de iniciar o show de forma primorosa, interpretando o samba-canção Feitio de oração (Noel Rosa e Vadico, 1933) com lágrima na voz. Por ironia, no fim do show, quando já estava mais descontraída, a cantora diluiu a densidade de outro antológico samba-canção de Noel, Último desejo (1937), cuja interpretação exige interiorização que Teresa ainda poderá alcançar ao longo da turnê do show.
Último desejo é uma das 11 músicas ausentes do disco Teresa Cristina canta Noel (Altafonte / Uns Produções, 2018), mas presentes no roteiro de show que expôs o largo leque estético da obra do compositor ao apresentar, entre sambas conhecidos como Com que roupa? (1929) e Palpite infeliz (1935), o pouco ouvido fox-canção Julieta. Composto em 1931 por Noel Rosa com Eratóstenes Frazão (1901 – 1977) e lançado em disco em 1933 na voz do cantor Castro Barbosa (1909 – 1975), o fox tem letra que menciona os nomes do casal apaixonado de uma das peças mais famosas do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616) e que expõe a verve de Noel ao perfilar com mordacidade uma Julieta que, em vez de Romeu, quer um coronel e diamantes.
Tal ironia por vezes deu atual sentido político ao cancioneiro de Noel na voz de Teresa, como no samba Onde está a honestidade? (1933), exemplo da atualidade da obra do compositor. Esse caráter político também ampliou o significado igualmente político de Teresa Cristina ter dedicado o show à vereadora carioca Marielle Franco (1979 – 2018), assassinada na semana passada em execução que a tornou símbolo mundial da luta contra toda forma de opressão das minorias. “Marielle está presente na obra de Noel. Ela está presente no Brasil”, afirmou Teresa logo após a primeira música do roteiro, sob aplausos calorosos da plateia que encheu o Theatro Net Rio.
Teresa Cristina
Mauro Ferreira
No show, além da voz, Teresa deu corpo ao cancioneiro de Noel. Com maturidade interpretativa alcançada ao longo de 20 anos nos palcos, a cantora sublinhou com gestos, poses, caras e bocas todos os sentidos das letras de Noel, como em Filosofia (Noel Rosa e André Filho, 1933), número em que lançou mão de risos e trejeitos que amplificaram o desprezo do compositor pelas elites econômicas. Em Seja breve (1935), esse gestual politizado foi aliado a inflexões vocais que valorizaram o samba, cujo ritmo já ágil foi intensificado por Teresa à medida em que o número se aproximava do fim. Em Não tem tradução (1933), o canto suavizado somente no verso “Com a voz macia é brasileiro, já passou de português” e o sotaque carregado na expressão “I love you” mostraram uma intérprete atenta a tudo o que estava cantando.
Escorada no toque antenado do violão de Carlinhos Sete Cordas, único músico em cena (tal como no show com o repertório de Cartola), Teresa bisou ao vivo, na embolada Minha viola (1929), a fluência do dueto feito com o partideiro Mosquito no disco gravado em estúdio. A breve presença de Mosquito em cena energizou o show.
Em algumas músicas, como o samba Gago apaixonado (1930) e (sobretudo) o samba-choro Conversa de botequim (Noel Rosa e Vadico, 1935), a cantora superou a gravação de estúdio. Teresa engatou Conversa de botequim com graça, sentada em cadeira, à mesa que simbolizava um bar, cenário que aludia à vida boemia de compositor cuja o lar às vezes era o botequim, como o próprio poeta confessou no triste inventário feito no derradeiro samba-canção Último desejo.
Foi ambientada nesse simbólico botequim que Teresa cantou o samba-canção Pela décima vez (1935) antes de se levantar para expressar, inicialmente a capella, o luto de Silêncio de um minuto (1935). Em que pese toda a verve graciosa que expôs no palco ao cantar Noel, Teresa Cristina se mostrou cantora (ainda mais) talhada para a exprimir a tristeza que é senhora em Deixa de ser convencida (Noel Rosa e Wilson Baptista, 1935) – pérola mais rara do repertório do disco/show por ter até então somente cinco registros fonográficos de pouca visibilidade – e em Quando o samba acabou (1933).
Mosquito e Teresa Cristina
Mauro Ferreira
Se a cantora brilhou na ironia e na tristeza, o violonista Carlinhos Sete Cordas contribuiu decisivamente para esse brilho ao armar a cama harmônica para que a cantora deitasse e rolasse na interpretação atenta da obra de Noel. Herdeiro da escola de Baden Powell (1937 – 2000), Carlinhos sintetizou a negritude do samba nas cordas do violão com rigor por vezes erudito. É um músico que se basta em cena. A ausência do batuque do título do show somente foi sentida quando, no bis aberto com a marcha Cidade mulher (1936), Teresa encadeou três sucessos carnavalescos da obra de Noel.
A cantora tentou pôr o bloco na rua com o medley que costurou o samba O orvalho vem caindo (Noel Rosa e Kid Pepe, 1933) com as marchas Pierrot apaixonado (Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, 1935) e A. E. I. O. U. (Noel Rosa e Lamartine Babo, 1931). Antes, em outro link, a cantora agregou o samba-canção Pra que mentir? (1937) com Dom de iludir (1976), música em que o compositor Caetano Veloso, apresentado como diretor musical do show e do disco, dialoga com a letra do tema criado 39 anos antes por Noel com o paulista Oswaldo de Almeida Gogliano (1910 – 1962), o Vadico, parceiro do Poeta da Vila em algumas obras-primas.
Com a contribuição de Caetano, como fez questão de explicitar em cena, Teresa soube entender e explicar em cena (pelo canto e pelo gesto, sem didatismo) a obra de Noel. E a verdade é que foi um privilégio assistir ao show em que Teresa Cristina dá voz e corpo ao cancioneiro atual de Noel Rosa. (Cotação: * * * *)
Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas
Mauro Ferreira
Eis o roteiro seguido em 21 de março de 2018 por Teresa Cristina na estreia nacional do show Teresa Cristina canta Noel – Batuque é um privilégio no Theatro Net Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Feitio de oração (Noel Rosa e Vadico, 1933)
2. O X do problema (Noel Rosa, 1936)
3. Não tem tradução (Noel Rosa, 1933)
4. Filosofia (Noel Rosa e André Filho, 1933)
5. Positivismo (Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1933)
6. Seja breve (Noel Rosa, 1933)
7. Onde está a honestidade? (Noel Rosa, 1933)
8. Gago apaixonado (Noel Rosa, 1930)
9. Minha viola (Noel Rosa, 1929)
10. Julieta (Noel Rosa e Eratóstenes Frazão, 1933)
11. Deixa de ser convencida (Noel Rosa e Wilson Baptista, 1935)
12. Pra que mentir? (Noel Rosa e Vadico, 1937) /
13. Dom de iludir (Caetano Veloso, 1976)
14. Três apitos (Noel Rosa, 1933)
15. Conversa de botequim (Noel Rosa e Vadico, 1935)
16. Pela décima vez (Noel Rosa, 1935)
17. Silêncio de um minuto (Noel Rosa, 1935)
18. Quando o samba acabou (Noel Rosa, 1933)
19. Último desejo (Noel Rosa, 1937)
20. Com que roupa? (Noel Rosa, 1929)
Bis:
21. Cidade mulher (Noel Rosa, 1936)
22. O orvalho vem caindo (Noel Rosa e Kid Pepe, 1933) /
23. Pierrot apaixonado (Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, 1935) /
24. A.E.I.O.U (Noel Rosa e Lamartine Babo, 1931)
25. Palpite infeliz (Noel Rosa, 1935)

Fonte: G1 Música – Leia a matéria completa.

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