Você não está querendo me matar, não, né?”, brinca Cao Guimarães, ao responder sobre o acento autobiográfico e memorialístico de “Amizade”, lançado no mesmo ano em que o cineasta mineiro completa seis décadas de vida, sendo quatro dedicadas ao audiovisual em suas mais diferentes formas, do filme feito em película às exposições digitais, algumas delas espalhadas em museus pelo mundo.
“A gente vai ficando velho, naturalmente, e as memórias vão aumentando. As sinapses vão ficando cada vez mais lentas, né? Como a nossa interlocução com a memória se torna mais intensa, fiz essa homenagem aos amigos”, registra Cao, ao abordar a espinha dorsal do filme, em cartaz nos cinemas. Estão lá, na forma de registros audiovisuais, pessoas fundamentais na caminhada do realizador.
O termo “caminhada” é uma figura de linguagem, mas serve também para explicar a narrativa estabelecida em “Amizade”, que se inicia com uma viagem de carro para o Uruguai em 2016, ao lado do amigo e produtor Beto Magalhães. Até a chegada ao destino, é como se o filme fizesse um longo flashback, um tipo de balanço que costumeiramente fazemos quando promovemos alguma ruptura em nossas vidas.
“Sempre quis fazer esse filme, porque a amizade foi uma coisa muito importante na minha vida. E, mesmo no meu trabalho criativo, eu tenho várias parcerias com artistas que são meus amigos. Então, eu quis fazer uma homenagem, uma celebração, olhando para essas imagens de arquivo. No Uruguai, com os meus amigos dentro de um HD, eu digitalizei muita coisa”, detalha.
Sem explicar muito o contexto ou quem são os personagens na tela, Cao resgata “imagens filmadas de maneira aleatória e ordinária, em situações as mais diversas”. Ele divide o filme em duas partes – a das válvulas e a dos chips. “Nos anos 80 e 90, vivemos um mundo valvulado, analógico, da Belo Horizonte com seus artistas plásticos, músicos e cineastas”, comenta, sobre o primeiro movimento.
“Depois é esse momento em que as pessoas estão isoladas, todo mundo introspectivo e tenso, devido à pandemia. Os temas são um pouco mais pesados, mais mórbidos, com reflexões sobre a doença e a morte. Uma coisa boa dessa época é que aprendemos a nos virar sozinhos, convivendo conosco mesmos. Tudo isso foi interessante para montar a estrutura narrativa do filme”, avalia.
Nesse resgate de “imagens que não tinham nada a ver com nada”, Cao encontrou um formato muito semelhante ao de alguns de seus trabalhos. “Eu sempre gostei de fazer filmes sobre alteridade, andarilhos, gente completamente diferente de mim e que está à margem da sociedade de uma forma radical. É uma maneira de aprender com as pessoas, é com o diferente que a gente aprende”, afirma.
Num filme de arquivo, “o interessante é que o outro era eu mesmo, porque, quando você olha o Cao ou para o Zé Bento e a Rivane (Neuenschwander) de 30 anos atrás, são outros eus, entende?”. Para ele, foi um processo muito rico, “por gerar um estranhamento”, já que as coisas que ele achava “esquisitíssimas no passado hoje são interessantíssimas, e vice-versa”.
“Amizade” conta também com muitas cenas de bastidores dos filmes realizados por Cao, perfazendo boa parte da carreira dele no cinema, com obras premiadas como “A Alma do Osso” (2004), “O Andarilho” (2007) e “Ex-Isto” (2010). “Eu tinha desde materiais domésticos, que nunca viraram filme, até sobras de meus trabalhos no cinema, porque nem tudo a gente põe depois que filma, né?”.
Foi durante a pandemia que ele resolveu “pegar o touro pelo chifre”, montando “um quebra-cabeça a partir de milhões de peças”, e uma forma de entrelaçar tantas imagens dispersas foi ele próprio se incumbir da narração. “Ela é muito importante para fazer isso acontecer, porque as imagens e os sons me diziam algo. Eu colocava no papel e narrava. Simples assim. Foi um filme muito doméstico”, destaca.
Ele observa que a maior parte de seus trabalhos é muito simples, feitos com poucas pessoas. “Eu gosto muito de montar, é como se fosse o trabalho de um escritor. Você escreve o filme ali, na edição, só que, ao invés de palavras, são as imagens e os sons. Você fica em busca de dar um ritmo àquilo. É uma narrativa no tempo. A arte cinematográfica é isso: imagem, som e também o tempo”.
Segundo Cao, essa “escultura no tempo”, termo usado pelo diretor russo Andrei Tarkovsky, depende muito do momento que está se vivendo. “Na pandemia, meio isolado, tudo isso passa para o filme naturalmente, criando certa melancolia”, salienta o realizador, que detecta uma filmografia muito variada. “Não sou um cineasta que gosta de se repetir ou encontrar uma fórmula”, assinala.
“A arte é uma coisa que sai da necessidade do fazer artístico mesmo. E esse trânsito entre o cinema e as artes plásticas promove isso. Fiz filmes na medida do possível e na medida das minhas vontades, dos meus interesses. E às vezes esses interesses são muito simples de serem feitos, como trocar pessoas que não se conhecem de casas”, argumenta, citando o documentário “Rua de Mão Dupla” (2002).
Por essa afeição pelo simples ele mesmo se define como um “cineasta preguiçoso” em relação a produções que exigem maior infraestrutura. “Ser diretor é um negócio que dá muito trabalho. É uma demanda que vem de vários lugares e você tem que dar conta. Para esses trabalhos grandiosos, eu gosto de ter um parceiro para dividir funções. Sou um cineasta mais da câmera”.
Um desses parceiros é o pernambucano Marcelo Gomes, do premiado “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), com quem fez “O Homem das Multidões” (2013), baseado em conto de Edgar Allan Poe que trata da impossibilidade de estar só. Os dois voltam a dividir o comando de um longa de ficção, desta vez sobre a terceira idade, enfocando a relação entre juventude e velhice.
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