No altar ecumênico de Rita Lee, há espaço para Nossa Senhora de Fátima e Hebe Camargo, Jesus Cristo e James Dean, o inocente ET de Spielberg e o temível Darth Vader de Star Wars. E talvez também esteja lá Santa Rita de Cássia, com quem a artista decidiu compartilhar uma data: o dia 22 de maio. Essa mudança, fruto de um capricho da cantora, que, nascida em 31 de dezembro de 1947, nunca se identificou com as badalações e ritos das festas de fim de ano, acabou se tornando oficial. Desde 2023, São Paulo – cidade que, para Caetano Veloso, encontra sua “mais completa tradução” na artista – celebra o Dia de Rita Lee nessa mesma data.
E é justo nesta quinta-feira, oportunamente um 22 de maio, que chega aos cinemas “Ritas”, documentário com direção do estreante Oswaldo Santana e codireção de Karen Harley – reconhecida no meio pelo seu trabalho como montadora.
O filme, que integrou a seleção do 30º É Tudo Verdade, principal festival de documentários do país, constrói um mosaico da vida da artista, utilizando como espinha sua última entrevista inédita, concedida em 2018. Nela, vemos uma Rita Lee de cabelos brancos, já distante do icônico ruivo “fogo no rabo”, em sua fase mais serena, reclusa em sua chácara ao lado do marido Roberto de Carvalho, dos jardins e dos animais que tanto amava. É como se, nos dizeres dela, tivesse trocado “o sol na cabeça” pela lua.
Conduzindo a narrativa, a artista surge folheando álbuns de fotografia, recortes de jornal e documentos oficiais – como os da ditadura militar e de uma das gravadoras pela qual passou, que, curiosamente, cada instituição a seu modo, a viam como um problema. Mas o longa não se limita a esse material. Com uma edição dinâmica, por vezes abrupta, mescla cenas caseiras, entrevistas televisivas, participações no “Saia Justa” e registros de shows e clipes – sobretudo dos anos de 1970. O resultado pode até soar meio “Frankenstein”, mas a escolha faz sentido diante da personalidade multifacetada da artista.
De roqueira a bossa-noveira
“Ritas” também aborda as relações da artista com nomes que estão no panteão da MPB, como, além de Gil e Bethânia, Elis Regina, Caetano Veloso e João Gilberto – com este último, dividiu o palco no especial “Grandes Nomes” (1980), interpretando “Jou Jou Balangandans”. Foi João quem a definiu com uma frase que ela carregou como um elogio: “Você é roqueira, mas tem voz de bossa-noveira”. Aliás, apesar de sua raiz rock’n’roll, o documentário sugere que Rita encontrou maior acolhimento na MPB do que entre os roqueiros.
Nesse sentido, é emblemática uma rusga nunca superada por Rita: sua saída dos Mutantes, que atribuiu ao simples fato de ser mulher. Foi também por se sentir subestimada e invisível quando estava em uma mesa rodeada de homens, que queriam definir os rumos de sua carreira, que a cantora, compositora e instrumentista deu uma banana para a gravadora que cuidava de sua carreira solo.
A condição de mulher – e as reflexões em torno do feminino – aparecem em outros diversos momentos do documentário e, claro, também pautam boa parte de suas composições. Está, por exemplo, na música “Luz Del Fuego” – o título homenageia a pioneira dançarina, naturista, atriz, escritora e feminista capixaba, de família mineira, que fez carreira no Rio de Janeiro após passagem por Belo Horizonte. “Eu hoje represento a loucura/ Mais o que você quiser/ Tudo que você vê sair da boca/ De uma grande mulher/ Porém louca!”, canta, no que parece uma síntese de uma série de reflexões dela sobre ser mulher.
Outro tema caro à artista, que também surge em suas canções – caso de “Vida de Cachorro”, gravada ainda com Os Mutantes –, é o ativismo pela causa animal. O assunto também aparece no filme em cortes que mostram o carinho da cantora com seus animais e com falas dela sobre seus esforços contra, por exemplo, a farra do boi – prática que envolvia maus tratos e foi proibida em 1997. “Bicho me faz enxergar Deus”, diz, à certa altura, a ateia, sem sofrer com a contradição. Afinal, como disse à Marília Gabriela, é do tipo que joga em todas as posições e, a julgar pelas tantas imagens de seu altar, reza para todos os santos.
Abordando tantos temas, a produção funciona como homenagem, mas, ao optar por apenas passear pelas tantas facetas de Rita Lee Jones de Carvalho – a roqueira, a bossa-noveira, a mãe e avó, a protetora dos animais –, peca ao nunca se aprofundar em nenhuma delas, deixando no espectador a sensação de “quero mais”.
Confira a matéria completa em: zug.net.br