Hospedada em uma bela casa de veraneio, uma família de classe média vive férias perfeitas em Long Island, ilha de Nova York. Nada poderia preocupar um casal de meia-idade e seus dois filhos adolescentes. Mas um imenso navio de cruzeiro se aproxima da costa da praia – onde estão passando o dia – e colide com banhistas.
Assustados, todos correm para casa e se deparam com outros estranhos episódios, como a invasão de animais selvagens na propriedade, a queda geral da conexão com a internet e veículos que colidem uns nos outros sem razão aparente.
Essas são algumas das possibilidades de acontecimentos apresentadas pelo filme “O Mundo Depois de Nós” (2023) se um dia o planeta perdesse completamente a conexão com o on-line. Na trama, inspirada no livro homônimo de Rumaan Alam, o fim da internet ocorre em função de um ataque hacker.
O longa-metragem de ficção científica com Julia Roberts e Ethan Hawke trata de um caso extremo, é claro. Mas trazendo para realidade, pode-se dizer que cenário pós-politípico já acontece em doses homeopáticas.
Seja por uma falha no sistema – como o apagão cibernético ocorrido em julho passado –, seja por uma decisão governamental, como quando o X (antigo Twitter) ficou fora do ar no Brasil após Elon Musk descumprir decisões do STF ou quando Donald Trump tirou a operação do TikTok nos EUA por falta de acordos com a rede social chinesa.
Nesse cenário, poderiam também as obras de artistas hospedadas na nuvem estarem ameaçadas por uma possível instabilidade digital? E, diante dessa possibilidade, seria a mídia física um lugar seguro para a perenidade artística?
Antes de se ater às perguntas, é preciso considerar alguns pontos. Professor aposentado da Escola de Música da UFMG, Carlos Palombini chama a atenção para a diferenciação de plataformas.
“Não vejo Twitter ou TikTok como equivalentes ao CD, vinil ou à nuvem. Os primeiros são redes sociais, geralmente utilizadas para distribuir a obra, enquanto os demais servem como suporte de armazenamento”, elabora Palombini, que também é pesquisador visitante da UFRJ.
Outro professor de música da universidade, Rogério Vasconcelos Barbosa pondera ainda que o “armazenamento na nuvem supõe um registro fixo/material em um computador (servidor) on-line e que a aparente ausência de traço físico é ilusória.”
Tendo isso em vista, pode-se dizer, caso um colapso nas redes aconteça, não necessariamente as obras lá hospedadas estariam totalmente perdidas.
Mas há exemplos que dizem o contrário. “Em relação aos riscos do armazenamento na nuvem, há precedentes preocupantes que mostram como confiar exclusivamente no digital pode ser problemático. O MySpace, por exemplo, perdeu cerca de 50 milhões de músicas entre 2003 e 2015 devido a uma falha nos servidores”, analisa o professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Claudio Paixão.
Artigo publicado pelo Pew Research Center revelou que 25% das páginas da internet sumiram em um período de 10 anos: das 630 milhões de links on-line ativos em 2013, 252 milhões desapareceram sem deixar rastros.
Nos serviços de streaming, também não há garantias de permanência do conteúdo, analisa Paixão. “Álbuns podem ser removidos por questões contratuais, assim como acontece com séries na Netflix”, comenta o cientista da informação. Nesse sentido, a mídia física funciona, sim, como exemplo de materialidade para uma obra.
“Esses formatos proporcionam uma experiência sensorial e, ao mesmo tempo, um aspecto de colecionismo. Para algumas pessoas, ouvir música com o ruído característico da agulha deslizando pelas trilhas do vinil adiciona um charme especial ao material. Os formatos físicos também agregam valor à obra musical por meio de encartes, letras e artes gráficas que enriquecem a experiência. Do ponto de vista da literatura, essa materialidade também é relevante. Inclusive, em um momento de censura, em que muitos livros são retirados de circulação, em uma biblioteca, ele estará preservado, independente se as pessoas concordam ou não”, analisa o professor Cláudio Paixão.
Escolha pela mídia física
O músico e compositor Makely Ka é um dos que desconfia da permanência do trabalho artístico no mundo digital. “Uma coisa em que sempre penso é que as plataformas surgiram recentemente. Vinte anos atrás, elas não existiam e, daqui a 20 anos, pode ser que elas deixem de existir. Alguns podem achar isso exagero, mas se essas plataformas fecharem, onde estará sua música?”, questiona.
Ele tirou sua obra do Spotify em discordância com a política de remuneração adotada pela empresa, e todo seu material artístico está disponível em discos. “Trabalho com a materialidade analógica. Os números do IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica) mostram que, na Ásia, os produtos físicos ainda têm grande relevância. Vendemos muitos CDs para o Japão, onde nossos trabalhos são divulgados em revistas e recebem críticas”, aponta Makely Ka.
Com mais de 30 de estrada, todo o material musical do Angra está disponível na internet – mas também em CDs e vinis. A escolha por produzir um material físico se baseia na relação afetiva que os fãs estabelecem com a obra.
“Durante os shows, o público sente vontade de levar algo que os ajude a relembrar a experiência. Por isso, vendemos CDs e DVDs, assim como bonés e camisetas. Esses itens, inclusive, se tornaram uma parte relevante do faturamento, já que grande parte da receita vem do que é vendido nos shows. Além disso, muitas pessoas valorizam produtos autografados, alimentando o aspecto colecionador”, comenta o guitarrista Marcelo Barbosa.
De certa maneira, colocar as músicas em CDs e vinis acabam fazendo com que elas se tornem eternas. “Por mais remota que seja, ainda existe a possibilidade de ficarmos sem internet a nível global. Então, é recomendado que os artistas tenham seus trabalhos salvos em mídias físicas. Afinal, como diz o ditado, ‘o seguro morreu de velho’”, analisa Barbosa.
Na avaliação dele, um álbum consegue contar uma história, diferentemente dos serviços de streaming. “A ordem das faixas é pensada com cuidado — por exemplo, a quarta música de um disco é escolhida para estar nessa posição por um motivo, pois há uma dinâmica específica ao ouvir o álbum inteiro. A obra completa é o CD, e as músicas individuais fazem parte de um conjunto maior. Mas em uma plataforma de streaming, essa lógica pode se perder”, sintetiza o músico.
Mazelas da mídia física
Por mais que a mídia física seja uma fonte segura para “guardar” uma obra artística, é inegável que o suporte para a reprodução delas sofre com o avanço tecnológico. Os notebooks, por exemplo, não vêm mais com entrada para CD, e é raro encontrar aparelhos de DVDs novos para comprar.
“A mídia física pode preservar o conteúdo, mas também está sujeita ao perecimento. Além disso, alguns formatos saíram rapidamente de circulação e, mesmo que não enfrentem um colapso geral, podem se tornar obsoletos. O CD, por exemplo, exige um aparelho específico para reprodução, e esses dispositivos estão sendo cada vez mais retirados do mercado”, aponta o professor aposentado da Escola de Música da UFMG, Carlos Palombini.
Além disso, há os próprios riscos próprios do ambiente. “Por exemplo, a poeira pode danificar vinis, os CDs estão sujeitos à degradação química e a umidade pode corromper fitas magnéticas, como cassetes e VHS”, identifica o professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Claudio Paixão.
Ainda assim, ele acredita que, embora alguns formatos físicos possam se deteriorar, ainda oferecem maior durabilidade e acessibilidade a longo prazo. “Esses formatos proporcionam uma preservação mais confiável do que o armazenamento exclusivamente digital. Por isso, muitos artistas e selos independentes têm investido no vinil e na fita cassete como forma de manter seu trabalho vivo, especialmente diante da instabilidade das plataformas digitais”, afirma.
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