Lei define os princÃpios para a regulação da internet no paÃs
Sancionado no dia 23 de abril de 2014, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965) completa dez anos nesta terça-feira (23). Por meio dele, buscou-se definir os princÃpios para a regulação da internet no paÃs. Entre eles, alguns relativos à proteção da privacidade e dos dados pessoais de usuários, assegurando a eles direitos e garantias.
Se, por um lado, o marco civil abrange questões relevantes como inviolabilidade e sigilo das comunicações, por outro prevê que tais dados deverão estar à disposição da Justiça, quando solicitados por meio de ordem judicial.
Durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, quando ainda projeto de lei, o Marco Civil da Internet teve como relator o então deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Atualmente, Molon é diretor executivo da Aliança pela Internet Aberta.
âO marco civil é uma vitória da sociedade brasileira. Ele foi construÃdo por meio de uma ampla discussão com os mais diversos setores da sociedade, segue bases e princÃpios muito sólidos e justamente por isso continua atualâ, disse à  Agência Brasil o responsável pela relatoria da matéria.
Neutralidade de rede
Para o ex-deputado, a aprovação do marco possibilitou à sociedade brasileira uma lei que garante aos cidadãos, entre outros direitos, o de ter uma internet âlivre, aberta e sem pedágios, bem como a proteção de sua privacidadeâ.
Na avaliação do ex-parlamentar, o Marco Civil da Internet (MCI) garantiu que dados e conteúdos possam fluir na internet sem discriminação, independentemente do tipo de conteúdo, de sua origem ou destino.
Molon explica que um dos grandes pilares dessa lei é a chamada neutralidade da rede, princÃpio segundo o qual o tráfego de dados deve ter a mesma qualidade e velocidade, garantindo igualdade de condições para diferentes sites que prestam o mesmo tipo de serviço, como plataformas de streaming e bancos.
>> Entenda o Marco Civil da Internet
âA neutralidade da rede se mostra cada vez mais importante à medida que o ecossistema digital se desenvolve. Não é por acaso que esse princÃpio continua sendo um pilar central da internet em outras regiões do mundo, como na Europa, e está prestes a ser plenamente restabelecido nacionalmente nos Estados Unidosâ, complementou Alessandro Molon.
Muitos legados do MCI foram observados nos setores de saúde e de educação, segundo Molon. O ex-parlamentar cita um levantamento do Health Tech Report, publicado em 2022, segundo o qual mais de 600 health techs (empresas inovadoras no setor de saúde) foram fundadas no Brasil desde 2016.
âApenas em 2022, as consultas médicas online foram utilizadas por 33% dos médicos e 26% dos enfermeiros em todo o paÃs, sem contar as anotações de enfermagem, que aumentaram de 52% em 2019 para 85% em 2022, e outras áreas de transformação digital na saúde, como exames e diagnósticos, prontuários eletrônicos, entre outrosâ, disse.
Na mesma linha, acrescenta Molon, está o setor de educação e o ensino a distância. âEle cresceu 474% em dez anos. Mais de 3 mil municÃpios oferecem ensino a distância no Brasil, permitindo levar a todas as regiões do paÃs, principalmente ao interior, formações que antes não poderiam ser oferecidas.â
Referência mundial
O MCI foi sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff na abertura do NetMundial â Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet, que reuniu em São Paulo governos, empresas, especialistas e ativistas em discussões sobre o futuro da rede. No evento, o Marco Civil da Internet brasileiro foi citado como âreferência mundial para as legislaçõesâ.
Advogada especializada em direitos do consumidor, telecomunicações e direitos digitais e integrante do Conselho Consultivo do Instituto Nupef (Núcleo de Pesquisa, Estudos e Formação), Flavia Lefèvre avalia que, após dez anos de sua sanção, o MCI mostra que acertou ao adotar a linha de ser uma lei principiológica e voltada para garantir direitos civis, assegurando o caráter público das redes, a liberdade de expressão e protegendo a privacidade e o consentimento informado.
âO MCI introduziu garantias fundamentais ampliando o piso regulatório do serviço de conexão à internet, como um reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento econômico, social e cultural do paÃs, além de ter atribuÃdo ao serviço de conexão à  internet o caráter essencial, tornando-o um serviço universalâ, disse à  Agência Brasil a advogada.
Ela acrescenta que a lei conferiu segurança tanto para os consumidores quanto para os agentes econômicos desenvolverem suas atividades no paÃs, âao estabelecer padrões para o tratamento de dados, protegendo a privacidade e assegurando a inviolabilidade das comunicações privadas, num momento em que ainda não tÃnhamos a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais]â.
Flavia Lefèvre lembra que o MCI possibilitou também a definição de prazos para guarda de dados e procedimentos visando à  entrega de dados para autoridades, bem como regras de responsabilidade e sujeição à legislação brasileira.
Novos mercados e serviços
Representando a cadeia econômica da internet como um todo, em especial as empresas provedoras de acesso, serviços e informações, a Associação Brasileira de Internet (Abranet) também vê muitos avanços, desde a implementação do MCI.
De acordo com a presidente da Abranet, Carol Conway, a internet abrange, atualmente, quase todos os mercados que, antes, só funcionavam no mundo offline. âEla trouxe inúmeras novas possibilidades, quebrou barreiras fÃsicas e nichos mercadológicos. Um exemplo são as paytechs, com suas contas digitais e serviços de afiliação de estabelecimentos. Além da infraestrutura para o Pix, dentre outros aspectosâ, disse ela à  Agência Brasil.
O ex-deputado Alessando Molon destacou conquistas, nestes dez anos do MCI, como ampliação do acesso da população à internet, melhora na conectividade, o desenvolvimento de milhares de pequenos e médios provedores de internet, a maior diversidade e qualidade de serviços e conteúdos para os consumidores e cidadãos.
âVimos inclusive com importantes iniciativas de governo digital ou, ainda, o desenvolvimento e a popularização de meios online de pagamento e transferência instantânea, como o Pix. Tudo isso só foi possÃvel graças à s bases sólidas do MCI, em especial do princÃpio da neutralidade da redeâ, ressaltou Molon.
Atualizações
Tecnologia e inovação têm, na internet, campo fértil para serem desenvolvidas e para ganharem alcance. Assim sendo, faz-se necessária uma atenção especial para o surgimento de situações que venham tornar necessárias atualizações à legislação brasileira.
à o caso, por exemplo, do Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020), em tramitação no Congresso Nacional. O texto estabelece normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas. Nesse sentido, trata das responsabilidades dos provedores visando ao combate à desinformação, bem como da garantia de transparência no que se refere a conteúdos patrocinados.
âConsiderando que o MCI é uma lei principiológica, acredito ser importante avançarmos na regulação, como se propunha o PL 2.630/2020, especialmente quando dispunha sobre obrigações de transparência, conferindo dose necessária de governança sobre as práticas algorÃtmicas aplicadas pelas plataformasâ, argumenta Flávia Lefèvre ao lembrar que o MCI prevê, também, um código de condutas que oriente os termos de uso das empresas.
Empresas
Representando empresas do setor de telecomunicações e de conectividade, a Conexis Brasil Digital (antigo Sinditelebrasil) defende que, para garantir as atualizações necessárias aos regramentos, é fundamental que autoridades, empresas e sociedade estejam abertas ao diálogo.
Presidente executivo da Conexis, Marcos Ferrari avalia que o MCI é um marco histórico para a conectividade brasileira, trazendo uma série de regras importantes para o ambiente digital, âem um momento de expansão da rede, quando seu potencial de uso ainda era uma incógnitaâ.
âAinda hoje, é um instrumento importante de proteção da privacidade individual, além de assegurar direitos e garantias aos usuários na internetâ, disse ele à  Agência Brasil, ao lembrar que a revolução vivida ao longo da última década continua se mantendo com âintensas e rápidas mudançasâ.
âPor isso, acreditamos que o caminho natural depois de uma década é de atualização de pontos do arcabouço legal vigente e de criação de novas regras e interpretações, incluindo também um debate sobre algumas modernizações no marco civilâ, acrescentou Marcos Ferrari.
Aplicação efetiva
Para a conselheira do Instituto Nupef, o MCI não precisa de revisão. âNa verdade, a lei ainda precisa ser aplicada de forma efetiva, pois alguns direitos como a neutralidade da rede, a garantia de prestação continuada do serviço de conexão à  internet, que é essencial, vêm sendo reiteradamente desrespeitados, como tem denunciado as entidades que integram a Coalização Direitos da Rede, no processo administrativo que corre no Ministério da Justiça, desde janeiro de 2023, sem que as autoridades competentes deem consequência e efetividade a esses direitos.â
âNa parte da responsabilização das plataformas, também a lei tem sido negligenciada, pois há ignorância completa com o que está disposto no Inciso VI do Artigo 3º, do MCI, que trata da disciplina do uso da internetâ, acrescentou Flavia Lefèvre, referindo-se ao trecho que estabelece princÃpios como o da responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades.
âApesar da clareza solar desse dispositivo, insiste-se na tese de que as plataformas só responderiam na hipótese do Artigo 19, que trata de responsabilidade quanto a conteúdos postados pelos usuários. Ou seja, tem-se ignorado a necessidade de se interpretar sistematicamente as leis, deixando-se de aplicar a responsabilidade das plataformas quanto à s suas atividades de moderação de conteúdos, como impulsionamento, recomendação, redução de alcance de conteúdos e contas, o que tem sido muito confortável para essas empresas e muito danoso em larga escala para a sociedade brasileiraâ, complementou.
Cuidados
Para Alessandro Molon, as bases sólidas do MCI não impedem avanços incrementais. âIsso pode ser feito. A Lei Geral de Proteção de Dados [LDPD], por exemplo, veio dialogar com o marco civil, estabelecendo uma regulação especÃfica para a proteção de dados pessoais. à medida que o mundo muda e novos problemas surgem, as leis podem ser aperfeiçoadas pelo próprio Poder Legislativoâ, disse.
âO fundamental é que se preservem os princÃpios da lei â que continuam a beneficiar os brasileiros e a nossa internet â e que os incrementos sejam feitos através de processos participativos e cuidadosos, para impedir retrocessos, protegendo-se integralmente aquilo que não precisa ser mudado, como a neutralidade da rede, por exemplo, já que não há nenhuma razão de ordem técnica, jurÃdica ou econômica para fragilizá-laâ, acrescentou.
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