O sincretismo do samba cantado por Maria Rita no show Amor e música extrapola as imagens de santos e orixás vistas no luminoso painel que compõe o cenário desse espetáculo que veio ao mundo nos primeiros minutos de domingo, 4 de março, na mesma Fundição progresso que já serviu de palco para as estreias cariocas e/ou nacionais de outros shows de samba da cantora como o massivo Samba meu (2007) e o mais refinado Coração a batucar (2014).
Ali, naquele amplo espaço de shows que costuma concentrar pequenas multidões no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ), Maria Rita parece estar sempre em casa para cantar um samba que é já dela há 11 anos. E foi ali que a cantora paulistana triunfou mais uma vez no traço de união que caracteriza o samba do show Amor e música. Baseado no álbum homônimo lançado em janeiro, o show foi feito com banda que agrega músicos de escolas distintas como Alberto Continentino (baixo), Fred Camacho (cavaco e banjo) e Wallace Santos (bateria).
Na feliz estreia, essa união conjugou as síncopes de um samba como Bola pra frente (Xande de Pilares e Gilson Bernini, 2014) – quebras talhadas para cantoras de apurada musicalidade como Maria Rita – com elementos do samba-jazz cultivado nas boates da década de 1960 e reavivado no show no toque do piano posto por Rannieri Oliveira em sambas como o calmo Chama de saudade (Davi Moraes, Fred Camacho e Marcelinho Moreira, 2018). Sem deixar de abarcar, claro, a animação dos sambas que têm mais pé no chão dos morros e dos quintais.
A cantora Maria Rita no show ‘Amor e música’
Divulgação / Guto Costa
Quando Maria Rita lançou mão desses sambas mais populares, como o coreografado Num corpo só (Arlindo Cruz e Picolé, 2007), como O que é o amor (Arlindo Cruz, Maurição e Fred Camacho, 2007) e como Maltratar não é direito (Arlindo Cruz e Franco, 2007), a temperatura subiu muito na estreia nacional do show Amor e música. Foi quando cantora e público, unidos, se fizeram ouvir numa só voz. Simplesmente porque, dos três álbuns de samba gravados em estúdio pela cantora ao longo dos últimos dez anos, o de maior empatia popular é o primeiro, Samba meu (2007), disco que dialogou com um público jovem e que cresceu ao ter o repertório transportado para o palco.
Cabe ressaltar que os shows de samba de Maria Rita geralmente superam os discos que os inspiraram porque, ao vivo, a cantora se mostra sempre segura e comunicativa. Tal segurança técnica foi reiterada na estreia do show Amor e música, ainda que um choro emotivo tenha atrapalhado a parte inicial da abordagem, com base de samba de fundo de quintal, de O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979), número de combustão imediata, turbinado com o mesmo coro forte da plateia que engrandeceu O show tem que continuar (Sombrinha, Arlindo Cruz e Luiz Carlos da Vila, 1988), samba colhido nos melhores quintais cariocas, na mesma raiz que fez brotar frutos como Saudade louca (Arlindo Cruz, Acyr Marques e Franco, 1989).
Diante de tamanha comunicação com o público, foi surpreendente o pouco efeito surtido em cena por Cutuca (Davi Moraes, Marcelinho Moreira e Fred Camacho, 2017), samba previamente lançado como single em setembro de 2017, antes de a cantora abortar o DVD gravado em julho em show em que apresentava o repertório inédito depois registrado em estúdio para o que veio a se tornar o álbum Amor e música.
Dentro do espírito sincrético do show, Maria Rita pôs bebop em Samba & swing (2018) – título inédito do cancioneiro autoral do compositor baiano Oscar da Penha (1924 – 1997), o Batatinha – e, ainda no terreiro baiano, caiu no suingue afro de Cadê obá (2018). Esta parceria de Carlinhos Brown com Davi Moraes foi sagazmente alocada no roteiro ao lado de Quando a gira girou (Serginho Meriti e Claudinho Guimarães, 2006) – partido que Rita já cantava no show intermediário Samba de Maria (2015 / 2016) – e de Reza pra agradecer (Nego Álvaro e Vinicius Feyjão, 2017), veículo para a cantora fazer oração a Yemanjá diante da imagem do orixá.
A cantora Maria Rita na estreia do show ‘Amor e música’
Divulgação / Guto Costa
Fora da esfera religiosa, Recado (Rodrigo Maranhão, 2005) se confirmou samba de grande força. Foi oportuna reminiscência do álbum Segundo (2005), o último disco de estúdio feito por Maria Rita antes da adesão ao samba que a ajudou a cortar definitivamente o cordão umbilical que ainda a ligava à mãe, Elis Regina (1945 – 1982).
Em contrapartida, o show Amor e música confirmou o que o disco homônimo já sinalizara: sambas como Cara e coragem (Davi Moraes e Arlindo Cruz, 2018) soaram menores do que a cantora, sinalizando a necessidade de maior rigor na seleção de repertório integralmente inserido no roteiro aberto com a recriação, em ritmo de samba, da abolerada canção Amor e música (Luiz Paiva e Moraes Moreira, 1991).
De todo modo, é inegável a beleza de melodias como as dos sambas Nem por um segundo (Fred Camacho e Zeca Pagodinho, 2018) e Rumo ao infinito (Arlindo Cruz, Fred Camacho e Marcelinho Moreira, 2014). São sambas que poderiam ter sido gravados por Beth Carvalho, de cujo repertório referencial Maria Rita revive sucesso infalível, Vou festejar (Jorge Aragão, Dida e Neoci, 1978), após dar voz a dois sambas magistrais da lavra de Gonzaguinha (1945 – 1991), É (1988) e O homem falou (1985), emendados em medley explosivo no bis que corroborou a perfeita sintonia entre Maria Rita e o público que gosta do samba que, sim, já é dela.
Ao fim do bis, os aplausos entusiásticos vindos do público que encheu pista, arquibancadas e camarotes da Fundição Progresso fizeram a cantora cair em choro convulsivo, sintoma de que, a despeito de toda a técnica, a cantora parece caminhar nos passos da emoção pelo terreirão de um samba desde sempre miscigenado e sincrético como o próprio Brasil. (Cotação: * * * 1/2)
Maria Rita chora no bis do show ‘Amor e música’
Divulgação / Guto Costa
Eis o roteiro seguido por Maria Rita no início da madrugada de domingo, 4 de março de 2018, na estreia nacional do show Amor e música na Fundição Progresso, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Amor e música (Luiz Paivão e Moraes Moreira, 1991)
2. Bola pra frente (Xande de Pilares e Gilson Bernini, 2014)
3. Num corpo só (Arlindo Cruz e Picolé, 2007)
4. Chama de saudade (Davi Moraes, Fred Camacho e Marcelinho Moreira, 2018)
5. Cutuca (Davi Moraes, Marcelinho Moreira e Fred Camacho, 2017)
6. Samba & swing (Batatinha, 2018)
7. Saudade louca (Arlindo Cruz, Acyr Marques e Franco, 1989)
8. Nem por um segundo (Fred Camacho e Zeca Pagodinho, 2018)
9. Cadê obá (Carlinhos Brown e Davi Moraes, 2018)
10. Quando a gira girou (Serginho Meriti e Claudinho Guimarães, 2006)
11. Reza pra agradecer (Nego Álvaro e Vinicius Feyjão, 2017)
12. O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979)
13. O show tem que continuar (Sombrinha, Arlindo Cruz e Luiz Carlos da Vila, 1988)
14. Recado (Rodrigo Maranhão, 2005)
15. Cara e coragem (Davi Moraes e Arlindo Cruz, 2018)
16. Rumo ao infinito (Arlindo Cruz, Fred Camacho e Marcelinho Moreira, 2014)
17. O que é o amor (Arlindo Cruz, Maurição e Fred Camacho, 2007)
18. Nos passos da emoção (Davi Moraes, Moraes Moreira, Marcelinho Moreira e Fred Camacho, 2018)
19. Tá perdoado (Arlindo Cruz e Franco, 2007)
20. Maltratar não é direito (Arlindo Cruz e Franco, 2007)
21. Perfeita sintonia (Fred Camacho, Leandro Fab e Marcelinho Moreira, 2018)
Bis:
22. Pra Maria (Marcelo Camelo, 2018)
23. É (Gonzaguinha, 1988)
24. O homem falou (Gonzaguinha, 1985)
25. Vou festejar (Jorge Aragão, Dida e Neoci, 1978)
Fonte: G1 Música – Leia a matéria completa.