(foto: AFP)
“Nunca consegui compreend-lo. Ser que ele era um manipulador? Eu nem ouso dizer essa palavra. Porque, para mim, ele era um pouco possudo.”
Alain Prost, ex-piloto da Frmula 1
Trinta anos depois da morte do maior rival, Alain Prost diz at hoje tentar entender Ayrton Senna. Dos seis episdios do documentrio “Prost”, os trs ltimos, lanados pelo Canal Plus francs na ltima semana, so quase inteiramente dedicados rivalidade.
Nunca antes o tetracampeo mundial falou tanto sobre o brasileiro. Mas a memria que Prost tem do rival de um modo geral positiva, sobretudo graas reconciliao entre os dois nos ltimos meses de vida de Senna. Na sala de casa, o francs tem uma foto com o brasileiro e uma estatueta dos dois no pdio.
Tratando-se de uma biografia francesa e autorizada, o documentrio acaba funcionando como uma espcie de outro lado srie ficcional “Senna”, lanada no ms passado pela Netflix, onde Prost aparece como vilo.
Entre outros destaques da srie, o francs confessa que s no deu um soco no rival, logo aps o acidente entre os dois em Suzuka-1990, porque viu que um telo mostrava os dois. “Acalme-se”, diz ter pensado na hora.
O documentrio apresenta Senna como um “segundo irmo” de Prost. O primeiro o irmo de sangue, Daniel Prost. Apaixonado por automobilismo, Daniel era o predestinado a se tornar piloto, mas foi impedido pela sade frgil um tumor no crebro na adolescncia e um cncer de pulmo que o matou aos 33 anos, quando o caula j era campeo da Frmula 1. “Corri um pouco por procurao”, conta Prost.
Alguns dos melhores momentos da srie so as cenas de famlia, dos filmes Super-8 da infncia entrevista com a me do piloto, Rosa Karatchian, que ajuda a desvendar a personalidade do Professor, como Prost ficou conhecido: um obcecado pela vitria, tanto quanto Senna.
Neto de sobreviventes do genocdio dos armnios da Turquia no incio do sculo 20, Prost teve uma infncia de classe mdia perto de Lyon. O pai era dono de uma oficina de cadeiras metlicas de cozinha. Sem qualquer vnculo com o mundo do automobilismo, Prost galgou os degraus combinando talento fora de srie dentro da pista com habilidade poltica fora dela.
Apesar do sucesso na carreira, da fama e da fortuna, Prost aparece no documentrio como um homem que se sente injustiado, com contas a acertar.
Queixa-se do pblico francs, que o apelidou de “Ano Amarelo” (cor dos carros da equipe Renault) em 1982, durante a rivalidade com o compatriota Ren Arnoux. Queixa-se de que o brasileiro Nelson Piquet ganhou roubado o ttulo de 1983, pilotando uma Brabham com gasolina adulterada. “A Renault no quis protestar e ganhar o ttulo no tapeto”, lamenta.
Senna parece deixar Prost perplexo at hoje. Em 1988, o francs convidou o ento novo companheiro de equipe a almoar na casa dele. Senna foi, mas o tratou com frieza. “Chamei-o para passear no jardim, ele preferiu dormir no sof. Achei mal-educado. Depois Claude Sage, chefe da Honda na Sua, explicou-se: ‘Ayrton me disse que, se ficar seu amigo, isso poder enfraquec-lo’.”
O misticismo de Senna tambm continua a espantar o francs. “Eu rezo noite, mas nunca contei com Deus como apoio. Como enfrentar de igual para igual algum pensando como ele, que se sente protegido por Deus?”
Prost se queixa tambm da simpatia da imprensa pelo brasileiro. E repisa recalques do perodo de trs anos em que o teve como companheiro na McLaren, entre 1988 e 1990:
Diz que Senna trabalhava menos que ele. “Enquanto ele descansava, eu tinha que ficar testando o carro na Inglaterra. Era sempre assim no inverno.”
Afirma que tem provas de que a Honda privilegiava o brasileiro com motores melhores. “No GP da Espanha [1988], estavam tirando os motores do caminho, e eu vejo: ‘Special for Ayrton’. O presidente da Honda me disse: ‘Reconheo que no fomos justos’.”
Completa que Senna rompeu com ele devido a uma inconfidncia, aps o GP de San Marino de 1989. Prost diz que interpelou Senna aps a prova, acusando-o de desrespeitar um acordo de no ultrapassagem na primeira volta. Senna reagiu chorando. “A eu cometi um erro. Contei essa histria a um jornalista, a quem eu sempre falava em off. Ayrton ficou to irritado, por eu ter contado que ele chorou, que parou de falar comigo.”
Sendo uma biografia autorizada, “Prost” dribla alguns episdios espinhosos, como o choque entre ele e Senna que decidiu o campeonato de 1989, no Japo. Acusado de bater de propsito para garantir o ttulo, Prost admite apenas que, antes da corrida, avisou que no “abriria a porta”. A interveno decisiva do cartola francs Jean-Marie Balestre, presidente da FIA (Federao Internacional do Automvel), ignorada.
O documentrio revela detalhes da deciso de Prost de parar de correr, ao final da temporada de 1993. O contrato do francs vetava Senna como companheiro de equipe durante dois anos. Mas o francs Patrick Faure, responsvel pelos imbatveis motores que impulsionavam os carros da Williams, confessa que a Renault preferia o brasileiro.
“Tnhamos vontade de Senna, adoraramos que Alain ficasse, mas no podamos abrir mo de um trunfo igual. Privilegiamos a certeza de ganhar. egosta, mas preciso dizer a verdade”, diz Faure na srie.
“C’est niet [ no]”, respondeu Prost ao dono da equipe, Frank Williams. Pressionado, o francs acabou cedendo seu lugar a Senna em 1994, em troca dos salrios do tempo no cumprido de contrato.
A reviravolta na relao entre Senna e Prost ocorreu no pdio do GP da Austrlia de 1993, ltima corrida do francs e ltima vitria do brasileiro. Prost estendeu a mo ao rival e, para sua surpresa, foi puxado por ele para o degrau mais alto.
A partir da, conta Prost, os dois passaram a se falar constantemente por telefone. Senna se queixava da dirigibilidade da Williams, problema que Prost conta tambm ter sentido na temporada anterior.
No fim de semana fatdico de mola, Prost estava comentando a corrida para a TV francesa. No dia da prova, foi chamado por Senna para conversar na garagem da Williams. “Ele no tinha de modo algum o mesmo semblante. No era o conquistador. No era ele. Dei um tapinha nas costas dele. Mas senti que seria complicado. Um Ayrton bem diferente do que conheci. Perturbado, quase cansado, desmotivado.”
Dias depois, j em So Paulo para o velrio do rival, Prost foi chamado pela famlia Senna para conhecer o quarto do piloto. “Disseram-me: ‘Ayrton tinha um profundo respeito por voc, preciso que voc saiba disso. Ayrton no parava de pensar em voc’. Mostraram fotos minhas, que ele guardava quando ainda corria de kart.”
Ainda hoje, 30 anos depois, Prost conta receber todos os dias “quatro ou cinco mensagens” sobre Senna: “Se eu cortar a histria de Ayrton, cortarei uma parte no s da minha carreira, mas da minha vida.” bem isso que mostra “Prost”, o documentrio.
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